quinta-feira, março 30, 2006

Sózinho suporto a
minha cruz:
nunca ninguém
sózinho suportou
a sua cruz -
mesmo Cristo, o
mártir salvador,
um ombro teve
que partilhou a sua
dor.

21/3/93

ANJO DA GUARDA

Por cima da minha cama
um anjo reza por mim -
tem a idade que eu tinha
quando rezava assim.

31-7-92

quarta-feira, março 29, 2006

As crianças
brincam e correm ruidosamente
do outro lado da janela
e
eu
vejo-as correr e brincar ruidosamente
e
lembro-me
de quando era
criança
e
brincava e corria ruidosamente
e
também elas
verão outras crianças
brincarem e correrem ruidosamente
e lembrar-se-ão de quando
eram crianças e corriam e brincavam
ruidosamente
e também essas crianças, um dia, se lembrarão
e
nada
disto interessa nada,
a não ser às crianças
que já brincaram e correram ruidosamente
e
agora
olham pela janela
e se lembram
de quando eram crianças
e brincavam e corriam ruidosamente.

2-2-91

segunda-feira, março 27, 2006

PINTURA

O horizonte
distante, mas fixo,
encerra
o espaço em si
e
atrai
todas as linhas
de fuga.

O mar,
lá longe, no horizonte,
cristaliza-se
num ângulo exacto
e
em transparências
puras.

Nós
vemos o lado de cá,
das ondas e
das nuvens
e das gaivotas e
dos navios,
quietos
e
sonhadores,
dentro
do
quadro.

13-3-90

sexta-feira, março 24, 2006

A noite
completamente negra
e
uns faróis
completamente
amarelos
e
um casal
que fuma
e
que não
sabemos
se se ama ou
se se odeia,
do qual não
sabemos
nada.
E
o carro
que passa
a altíssima
velocidade.

13-3-90

ESTRADA DO GUINCHO

Rasgar
o indefinido negro
da noite
com os faróis amarelos
do automóvel veloz.
A coisa
escura
por momentos
infinitesimais
quase objecto:
logo,
outra vez,
amálgama
sem significado.
Do ruído ao ruído.
Incomensurável, sem significado.
Da vertigem à vertigem.

15-1-87

terça-feira, março 21, 2006

No negro absoluto
da noite da auto-estrada.
Na vertigem absoluta
da velocidade devoradora da auto-estrada.
Naquilo que se parece com vazio
e vem da velocidade, do ruído,
da marginalidade da auto-estrada.
No espaço uniformemente abstracto
da auto-estrada,
abrem-se, assépticos e indiferentes, os recintos iluminados das bombas de gasolina,
como se fossem espaços destinados a tragédias.

30 - 8 - 87

segunda-feira, março 20, 2006

O que está em baixo
é igual a
o que está em cima.

É por isso
que o céu
está barrento
e não tem estrelas.

O céu não tem estrelas
e está barrento
como a terra
e
o vento
mistura tudo
num turbilhão
turvo
no fim da tarde
sem sol.

2/3 - 9 - 87

domingo, março 19, 2006

A
noite
é uma alegoria.
Uma alegoria
que Deus fez
dos nossos medos.
A noite
é a alegoria
dos nossos medos,
é o visível
dos nossos desejos,
é a presença física
da ausência,
dos nossos vazios,
do que não temos,
do que nos falta.

22 - 6 - 87

sábado, março 18, 2006

Três luzes
amarelas quase vermelhas,
como um incêndio,

longe num barco,
a acinzentarem
o negro
húmido da noite.

1 - 2 - 87

quinta-feira, março 16, 2006

Encostar-me à parede lisa
de um prédio
e deixar
que ela me sugue o olhar
até à esquina.

(27-11-86)

quarta-feira, março 15, 2006

Ser eternamente
pose.

(27-11-86)

terça-feira, março 14, 2006

Essa sombra
na minha face
que nem um gesto dramático
da minha mão
consegue apagar.

2[...] NOV. 1986

segunda-feira, março 13, 2006

Reflectido
na grande janela
de vidro da sala de estar,
sou como uma fotografia,
eterno e misterioso.

Eterno e misterioso
como uma fotografia,
exacto,
no local preciso,
sem paixões,
nem
dor,
nem desejo.

15 - 10 - 86

sexta-feira, março 10, 2006

Sala vazia. Silêncio. Penumbra.
Um abat-jour ligeiramente torto.

quinta-feira, março 09, 2006

Este meu Fado...
Não sei se me foi dado,
se fui eu que o fiz.
Ó Fado,
não sei se sou teu escravo,
não sei se em ti lavo
as culpas que não quis.

Agosto 84

quarta-feira, março 08, 2006

HESPANHA

P'ra 'onde vais, Tejo,
quando chegas ao mar?
P'ra 'onde te leva ele?
Que caminho queres tu?
P'ra 'onde vão
as tuas águas doces?
P'ra 'onde levas tu
a nossa alma cansada?

23 - SET. - 85

terça-feira, março 07, 2006

Vem, vem comigo.
Vamos sonhar que a Pátria existe,
vamos fingir
que ela é eterna.

E vamos chamar o Fernando,
porque se o Fernando vier
traz o Vieira do Império
e o Bandarra.
E o Bandarra
olha para o Longe
com olhos
muito grandes,
muito loucos,
fixos em coisa nenhuma,
a fazer de conta
que vê o Futuro.

E depois levantamo-nos
e cantamos hinos
e morremos
como heróis
pela alma eterna da Pátria.

E depois vamos todos para casa...
Vem, vem comigo...

segunda-feira, março 06, 2006

P'ra escrever
não preciso de ver as letras
que escrevo.
As palavras já estavam
na minha cabeça.

Mas só no papel
são
outra coisa
mais
do que ideia só.
E há o gosto
de as dizer -
eu gosto
de as sentir nos lábios.

5 - 5 - 85

sábado, março 04, 2006

Poetas só mortos - ou em vias.
Precisam dos Louros e, nestes dias
em que Apolo já não há,
só a Morte os dá.

sexta-feira, março 03, 2006

TORRE DE MARFIM

I

Passar a vida inteira aqui.
Olhar o mar,
a gente a passar
e
chorar.

II

Mover-me não tem sentido nenhum.
Não há sítio nenhum para onde ir,
nenhuma meta,
nenhum caminho.
Ficar a vida inteira aqui,
a ver a gente a passar -
- e o mar.

III

Deus
não fez
conta
nenhuma.

Fazer as contas
que
Deus
nunca fez
e
encher tudo com elas,
quadricular as praças com linhas exactas,
marcar o ponto da Bauhütte
e
ficar
para sempre

só.

1 - 5 - 1986